IA feminista: conceito e convite
A crescente penetração de sistemas algorítmicos e tecnologias de inteligência artificial (IA) nas dinâmicas sociais, políticas e econômicas do mundo contemporâneo tem gerado questionamentos urgentes sobre as estruturas de poder, os critérios de decisão e as lógicas de exclusão que tais tecnologias podem amplificar, reproduzir ou transformar. Diante da centralidade desses sistemas na produção de sentido, na organização do mundo e na mediação de direitos, torna-se fundamental refletir criticamente sobre os valores e epistemologias que os informam.
Nesse contexto, surge a proposta de uma inteligência artificial feminista, não apenas como alternativa técnica, mas como projeto político, epistêmico e ético orientado à justiça social, de gênero, racial e territorial
A noção de IA feminista está em construção e é, por definição, plural, inacabada e aberta à contribuição de diferentes experiências e saberes. Parte do reconhecimento de que os sistemas de IA não são neutros: carregam escolhas humanas, reproduzem desigualdades e moldam futuros.
De forma preliminar, propomos compreender a IA feminista como sistemas de decisão algorítmica e inteligência artificial concebidos com base em conhecimento situado e inclusão desde a origem, com o objetivo de criar novas oportunidades e corrigir proativamente desigualdades estruturais. Essa definição em construção tensiona pressupostos clássicos da engenharia computacional e da governança tecnológica, deslocando o foco da eficiência e do desempenho para a justiça e a reparação.
A interseccionalidade é um dos pilares teóricos dessa proposta. Não se trata apenas de incluir “mais mulheres” no desenvolvimento tecnológico, mas de reconhecer que o gênero é sempre atravessado por outras categorias de opressão e que é a partir dessas intersecções que se deve pensar o design, o uso e a regulação da IA. Isso impõe um desafio metodológico: construir sistemas que não apenas reconheçam a diversidade, mas que sejam concebidos a partir de epistemologias diversas, experiências historicamente invisibilizadas e lógicas que escapam à racionalidade dominante.
Outro pilar fundamental é o conhecimento situado, que parte do reconhecimento de que todo saber é produzido por sujeitos encarnados, localizados em contextos específicos, com histórias, corpos, línguas e afetos que moldam sua compreensão do mundo. Isso implica abandonar a ilusão de que a ciência, e por extensão a tecnologia, pode ser neutra, objetiva ou universal.
A IA feminista, assim, é tanto uma prática quanto um horizonte político. Ela pressupõe a inclusão desde a concepção, isso é, não se satisfaz com a mitigação posterior de vieses, mas busca prevenir a reprodução de desigualdades desde o início. Como tal, ela desloca o debate da correção de erros para a reimaginação dos próprios fins da tecnologia.
Esse compromisso com a justiça estrutural se traduz também na utilização de qualquer tecnologia para criação de novas oportunidades para grupos marginalizados. Uma IA feminista é aquela que não apenas evita danos, mas que ativamente promove o acesso a direitos, o reconhecimento de identidades e a redistribuição de recursos. Trata-se de pensar a tecnologia como ferramenta de emancipação e não de controle, como aliada na luta por equidade e não como reprodutora de hierarquias.
Nesse cenário, ganha centralidade a ideia de correção proativa das desigualdades. Mais do que não discriminar, trata-se de adotar ações afirmativas dentro dos sistemas algorítmicos, favorecendo grupos historicamente sub-representados. A justiça algorítmica, nesse sentido, deve ser distributiva, reparatória e epistemológica: comprometida com a transformação estrutural das injustiças.
Uma IA feminista, portanto, não se restringe à técnica, ainda que a exija. . É também uma abordagem crítica, política e comprometida com a efetivação de direitos fundamentais. Desafia a separação entre técnica e política, entre neutralidade e valor, entre design e mundo. E, ao reconhecer a IA como um campo de disputa, reivindica para si o direito de imaginá-la e construí-la a partir de outras lógicas, outros saberes, outras práticas.
É importante destacar que a proposta de uma IA feminista não é homogênea, nem pretende oferecer uma única resposta ou modelo. Pelo contrário, ela se alimenta da diversidade de vozes, experiências e práticas que compõem o campo dos feminismos contemporâneos. Em especial, das epistemologias feministas negras e decoloniais, que já vêm denunciando os impactos assimétricos das tecnologias sobre seus corpos, territórios e modos de vida.
Uma IA feminista não se faz sem escuta, sem diálogo, sem dissenso. Este manifesto, portanto, é também um convite.
Convidamos pesquisadoras, ativistas, profissionais da tecnologia e suas usuárias a contribuir com a construção coletiva desse conceito. O que é uma IA feminista a partir do seu lugar? Quais são os desafios e as potências que você enxerga na articulação entre tecnologia e justiça social? Quais exemplos, experiências, práticas e metodologias você gostaria de compartilhar? Que faltas e silêncios você reconhece na definição aqui proposta?
Este é um chamado à construção coletiva, situada e insurgente de um outro modo de imaginar e fazer tecnologia. Um modo que reconheça a tecnologia como território político; que recuse a desumanização como preço do progresso; que valorize o cuidado, a escuta e a reparação como princípios estruturantes; que se comprometa com a transformação radical das condições de vida das populações historicamente excluídas.
A tecnologia não é neutra: ou ela reproduz a violência, ou ela a enfrenta.
A IA feminista que buscamos não será dada, nem será construída por poucos. Ela é, e continuará sendo, uma construção inacabada, polifônica e situada. Por isso, ao nomeá-la, não a encerramos, mas a abrimos. E é com esse gesto de abertura que convidamos você a compor essa caminhada conosco, com seus saberes, suas dúvidas, seus territórios, suas histórias e sua visão de mundo. A inteligência artificial feminista começa onde nos dispomos a escutar o outro como legítimo produtor de conhecimento. E, nesse gesto, transformar radicalmente as tecnologias, os saberes e as sociedades que delas se alimentam.
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